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tudodenovomesmo
Monday, December 29, 2003
 
SENTIMENTO SEM SAÍDA E SEU FIM

- o amor.

-os cabelos e as unhas também.

-também o quê?

-vão continuar crescendo depois.


grande túnel de mistérios.
 
ENTRE IRMÃS

- tá vendo essa semente de pêssego?
- e daí?
-dá para acreditar que tem uma árvore aqui dentro dela? e vários pêssegos?
- dã...
- é um milagre, cara.
- em você também tem, todo mês.
- uma árvore de pêssegos?
- não, uma árvore de bebês. que dá no máximo três de uma vez.
- putz, eu não queria pensar nisso agora...
- foi você quem começou.
 
esquecer o desodorante, ouvir descrições sobre seu cheiro, dormir em paz.


 
amizade.

o amor fora da lei.


Sunday, December 28, 2003
 
1.

Não estou conseguindo abrir as portas desse armário.
Não estou conseguindo abrir a tampa do piano.
Não posso fechar o chuveiro.


2.

As pessoas estão sempre na mesma biblioteca. Os livros circulam, são renovados, perdidos, roubados, podem até mudar de nome. A biblioteca continua a mesma. Os professores envelhecem, assinam contratos temporários, são efetivados, despedidos, se aposentam. A biblioteca continua a mesma. As pessoas vão sempre às mesmas prateleiras, aos mesmos autores, e nada no mundo parece mudar isso. Uma experiência boa ou ruim é suficiente para inaugurar uma eterna busca por esse ou aquele autor, ou um desprezo definitivo e imortal, incurável. A biblioteca continua a mesma. Por motivos de segurança, tenho sempre um amigo à esquerda e outro à direita.


Saturday, December 27, 2003
 
1.



Vontade de me jogar lentamente nos seus ombros, mesmo sabendo

que algo dentro dele é escorregadio demais para as minhas mãos.

Os homens são navios, recolhidos, reservados, elegantes,

bonitos à sombra.

Ele não. Imagine um terno laranja no meio de um funeral, imagine uma

roupa de linho num bairro gótico, imagine entusiasmo no fim da noite.


Você tinha peso, mas não sabia grudar o peso nas palavras.

Tudo prateado, dourado, partido.





Meu amor, seu abraço é um envelope de sol.



2.

Eu vou deixar que as minhas mãos escrevam como eu estava.

Deitada.

Da sua boca todo o mar salgado e os galões verdes e amarelos com ferrugem laranja e o sol e a planta que cresce na areia e os peixes e um pedaço de manga derrubaram meu corpo.

Por um tempo achei seu rosto descoberto.

Respirando devagar, mergulhando longe de mim.

Seu brilho fácil foi embora.

Veio o brilho das navegações, das ilhas amarelas, das gaivotas famintas tomando sol, das nuvens. Tão lentas e tão finas, boiando no azul exagerado do céu.

Veio o brilho, não era a noite estrelada, o brilho da areia cinzenta, da pele brilhante, do último dia.

Hora de cantar com a espuma, hora da suavidade marinha, hora que gastamos sem querer.

Você tinha ido para longe, tomado uma grande distância de si, das palavras, do meu rosto. Eu sou melhor de olhos fechados.

Mas você estava largado em mim.

Você era espuma.

Eu sei porque eu estava lá embaixo, bebendo o vermelho dos seus lábios acesos, dos seus olhos sem direção, abertos, meio abertos, aniquilados, marejando.

Eu sei porque eu estava lá embaixo, tragando a fumaça escura e pesada que saia de dentro das bocas. Sentindo quando te levava, sentindo quando você se esquecia, sem desistir mesmo que a loucura de tudo parecesse definida, sem desistir de levar o meu corpo, tomando força para usar o vento.

Eu vi seu rosto descoberto.



choveu choveu choveu e eu não dormi.



Thursday, December 25, 2003
 
1.

- se você fosse um objeto, que objeto você seria?
- um guarda-chuva.

2.

A música nunca vai me deixar sozinha.
A música vai me deixar junto de coisas que vão se soltando na minha cabeça e da minha pele. A música vai acariciar meus cabelos, vai me dar um abraço de muito tempo.

3.

Ana e Marília


Marília e Ana se encontraram. Ana tinha acabado de sair da terapia e não

conseguia se comunicar direito. Tinha aquela expressão vaga de quem está

com a cabeça mergulhada num aquário onde as palavras são peixes magros

que não chegam até a boca, só ficam zanzando de um lado para o outro,

enquanto os olhos estão parados. Ana queria saber a resposta. Marília

conhecia a amiga muito bem, sabia qual era a pergunta de Ana, mas

mesmo assim insistiu, só para ver se ela teria coragem de falar. Queria pescar

aquele peixe vermelho.

Ana ensaiou, fez charme, ficou piscando os vaga-lumes, sorrindo feito criança,

perdendo o brilho, gastando tempo, daí puxou um pouco de ar e, sem olhar

para a amiga o tempo todo, disse: “eu só queria saber se existe mesmo...” A

amiga sentiu o tambor da certeza bater no coração. Adivinhara. O peixe se

debatia inutilmente de uma boca para a outra. Flap, flap, flap. Palavra tão difícil

aquela. Flap, flap, flap. Felicidade. Flap, flap, flap, flap.


Marília queria mostrar para a amiga, queria abrir bandeiras no asfalto, queria

sacudir o corpo, queria ter os gestos mais bonitos. Está aqui, está ali, está

debaixo da sua língua, Ana, olha o vento, olha o gramado, olha aquela mulher,

olha a chuva, olha, Ana.

Ana sabia de tudo o que a amiga queria dizer, mas o médico estava proibindo

a garota de ver, de ser, de poder, de abrir. O médico de Marília dizia que elas

estavam juntas porque não suportavam nenhuma autoridade. O médico de

Ana dizia que Marília era pior do que a cocaína. Mas elas acabaram largando

aqueles médicos e se encontrando de novo. Outras vezes, quando andar pela

cidade e respirar pareciam coisas impossíveis. Ana está casada.

Marília escuta os mesmos discos todos os dias. Sonha que Ana virou uma

sereia. Ana sonha que está dormindo numa cama de peixes azuis.



Tudo o que Ana queria era amar sem gastar o amor.


Marília só queria ter nascido homem. Não.

Marília só queria ter nascido outra pessoa.





Mundo solitário, você sempre me abraçou quando eu precisei.




Wednesday, December 24, 2003
 
MEMÓRIA


era dia dos namorados. um coração novo pode sofrer só uma vez.

dezessete anos.

tinha medo de andar na rua sozinha, mesmo com o gosto de aventura.

ela não tinha muito dinheiro e tinha vergonha de comprar uma flor. tinha medo. não saberia escolher. sabia que era dia de um presente e sabia que precisava ser efêmero, delicado e exuberante, como uma poça de sangue de uma heroína que morre de amor. chegou na livraria. ele não chegou antes dela, era ela quem carregava todo o amor. ele só levava a disposição para raspar a cabeça e ir se afastando. ela carregava todo o amor.

ela se vestia mal. ele não a amava.


ele chegou com um girassol


amarelo.


de noite, a mulher mais bonita da cidade acordou com seu rosto molhado no espelho.


nunca mais poderia chorar sem perceber.


porque viriam os livros, os fatos e o esquecimento de si,
cada vez mais impossível.


 
você me escreveu hoje. explicando tudo. acho que você não está se sentindo bem aí no seu canto.

se não está se sentindo bem no seu canto, está longe de mim.

por isso eu quis tanto que você ficasse bem, para poder ficar do meu lado.
não vou dizer para sempre. pronto, não disse.

eu falei tanto que você é bonito. eu disse que sentia paz quanto passo a mão em você, você disse que achou que isso era mentira, que eu estava dizendo isso só para te conquistar.

cada coisa estabanada que você faz. meu deus.

eu continuo achando graça.

as nuvens, o dia frio, hoje eu ganhei elogios de alguém que lê tudo isso e estou gostando de ficar em casa.

a cadelinha dorme.

daqui há pouco é Natal.

falando em jesus, você já teve medo de ser magoado pela humanidade? já teve medo de ser carniça para os outros? o amor é a guerra mais sinistra de todas porque quem não está dentro dela está morto.

quem não ama morreu.



uau.




Monday, December 22, 2003
 
DESABAFO

na verdade não adianta muito, em termos de vida prática, mudar seus valores. as pessoas que se relacionam com você vão agir de acordo com o que muito mal aprenderam e viram na televisão e no cinema (vou deixar os livros de fora, mas por pura delicadeza).

você pensa, eu não vou me relacionar dessa maneira, não acredito nisso. você faz outra coisa. mas você esquece que é um cara que está do outro lado, um cara que nasceu nessa cidade maldita. ele vai fazer tudo igualzinho, por baixo do pano, igual no cinema ruim, igual na tv, igual os amigos.

você pensa, caralho, mais uma vez.

então você decide que vai fazer igualzinho no cinema e na tv, você vai ser uma pessoa ciumenta, você vai querer se casar e ter filhos, você vai lavar a roupa do seu maridão e trabalhar fora.

começa a dar certo.

os psicólogos dizem que assim é a vida das pessoas maduras.

mas aí começa a vontade de pegar a estrada e comer um pouco de poeira.


mais uma vez você lembra daquela pessoa que ainda ama você e está casada em algum lugar. daquela que namora a filha de um professor seu, daquela que está virando artista, de tantas outras.

os livros te olham da prateleira.



Mundo cinzento, você era mais bonito.


Mas eu também era.


Os anjos vão tocar uma música para nós, o mundo está escuro mas não terminou.

Está ouvindo?

A música vai dissolver tudo isso.




 
confissão

eu tenho medo de ver cachorros sozinhos. nas grandes avenidas. eu poderia chorar todas as lágrimas de uma vida por causa disso. cachorros presos nos quintais dos fundos das casas, o dia inteiro presos, ficando loucos. quem sabe eles cantem para a lua. quem sabe. o ar da noite deve ser uma bênção. sempre é.

Mundo cheio de dias quentes e lágrimas quentes que não chegam nunca.

As mulheres deviam viver em cidades bonitas.


 
FIM DE MAIS UM JOGO, COMEÇO DA DIGESTÃO IMPOSSÍVEL E LEMBRANÇAS PARA A SANTA ALEGRIA


então eu amo você.
me disseram que eu devia parar.

você não sabe como é, você não dá muito importância.
é como se não fosse com você.

mas você estava gostando. algumas coisas estavam ecoando aí dentro.

também dentro de mim, meu anjo.

nunca poderia dizer que não me fez bem.




talvez se um dia você escalar uma montanha sozinho.
ou precisar fumar um cigarro.
ou gostar de quando seu coração fica quente, e até parece vazio.
quem sabe.

eu preferia a morte do que ser mesquinha.
por isso estou morrendo.

as mulheres estão sempre morrendo. são bonitas.

Mágoa, Piedade, Insônia e Santa Alegria estão cuidando muito bem de mim.

E das asinhas que vão crescer novamente.

Você não entenderia minha tristeza, minha alegria.

O ressentimento é tão idiota quando o peito está cheio.



Mundo cinzento, tenho um arco-íris para você.




Sunday, December 21, 2003
 
RAIVA

Sentir raiva não é feio. Raiva é uma oportunidade. Quando Raiva chegar, convide-a para dançar. Se esquecer ou dançar com outra, Raiva entra no seu cérebro e vai pouco a pouco apagando todas as suas qualidades da sua memória. E então você vive sem se lembrar delas. Ainda não danço muito bem, piso no pé da Raiva, com algum sentimento.

AS TRÊS IRMÃS

Normalmente a Mágoa chega primeiro. Branca, com cabelos compridos. E todas as noites ela me põe na cama. Vem a Insônia, de camisolão de hospital. Vem a Piedade. Piedade veste várias roupas, conforme o estado de espírito. Piedade sabe cantar, mas eu não vou dizer com quem ela aprendeu isso. De qualquer modo é assim. Mágoa, Insônia e Piedade ao pé da cama.

E quase nunca chamam a Raiva para ficar com elas. Raiva é muito bagunceira e não entende nada de solenidade. Não tem educação, é uma pobre coitada. Mas normalmente estão juntas porque a Raiva sempre acha que o convite ainda está de pé. Ficam fofocando, fazendo a maior festa. Enquanto você está lá, acordado, fumando, todo fudido.

FASHION WEAK

A Raiva é original. A Mágoa não. Nem a Piedade. Mas a Piedade é como os botões, nunca sai de moda.

DUAS IRMÃS

As duas irmãs estavam andando pela rua lado a lado. A mais velha parou numa vitrine e a mais nova foi comer um hot dog. No momento em que a mais velha disse “vou levar”, a outra deu a primeira mordida. As duas desapareceram.

Na galeria escura, cada uma com sua tarefa. A mais velha deveria colocar todos os dragões na caverna, os príncipes sobre cavalos, as tempestades fora do alcance das malditas mulheres, os gatos longe das ruas, o sol no seu coração e você ao lado do meu. A primeira precisava cuidar da garganta dos dragões, das asas das fadas, desembaraçar seus cabelos finos, lustrar as armaduras dos príncipes, alimentar os cavalos, colocar as mulheres para dormir, caçar com os gatos, aquecer seu coração ao lado do meu.
A segunda irmã precisava cuidar para que o dinheiro alimentasse seu espírito, precisava dar nome a sentimentos desconhecidos, celebrar a confusão como quem comemora a vitória do time mais fraco. A segunda irmã precisava dar utilidade ao ócio, à melancolia, ao tédio mortal. Precisava desafiar as lágrimas das malditas mulheres. A segunda irmã devia dar uma função para os medos e a solidão. Precisava encontrar sua feminilidade mais voraz, sua fraqueza mais simples.
E sabemos que a primeira poderia dar sentido à preguiça, como também sabemos que a segunda teria a mão boa para consertar uma armadura ou aprender alguns golpes.
Mas era proibido trocar de tarefa. Continuariam ali até o fim. A estrela do mar e a areia. A primeira, convencida demais, a segunda convencida de menos.
Muitos dias se foram nessa galeria terrível. A primeira prefere contar as escamas dos dragões do que pensar no fogo de suas entranhas, perde tempo com medo e desiste. A segunda irmã quebra a cabeça para encontrar um sentido para a melancolia, e continua achando que isso é desculpa de vagabundo ou coisa do diabo.
Mas não acaba aqui. Depois de muitas tentativas, a irmã mais velha consegue convencer uma fada a desembaraçar os cabelos e a irmã mais nova encontra na melancolia uma fenda que pode levar à felicidade. No minuto seguinte, cada uma se lembra da outra. A primeira irmã morde o hot-dog e a segunda irmã calça o salto alto. Quando a gente se abraça, meu coração beija o seu.

MENINA INFELIZ

A menina mais infeliz quis programar os encontros dos príncipes com as princesas, medir o calor e o comprimento do bafo dos dragões, saber exatamente quantas fadas moravam na floresta. Quando acordou, com uma coroa na cabeça e uma armadura no corpo, sua cama em chamas rodeada de cinqüenta e duas fadas cantando uma canção altíssima no seu ouvido. Não desistiu nem pediu perdão. Sabia que podia contar com Mágoa, Insônia e Piedade ou esperar que Raiva se ofereça mais uma vez.

MENINA FELIZ

A menina mais feliz brincava com Raiva sempre que podia.


PÉ ESQUERDO E SUICÍDIO

Levantou da cama atrasado para o serviço. O trabalho acumulado. Sabia. Dor de cabeça. A morena não sentiu nada. Foi até o banheiro. A pasta acabou. O rosto ganhou bom dia da lâmina, o corpo quase ganhou uma caixa só para ele com o carro que virou a esquina. Acendeu um cigarro. Perdeu todos os papéis da reunião num flerte com o vento. Segui o corredor até a porta iluminada. Entrou. Foi devorado vivo pela máquina de cópias e sumiu para sempre.


NO JULGAMENTO

- Meretíssimo, a ré não tem razão de viver. Ele n´a pas raison d´être.
- Prossiga.
- Se apaixonou por um garoto magro que casou-se com outra.
- E o que ela faz? Espera?
- Sim, Meretíssimo.
- Então ela já está condenada. Toc,Toc,Toc. Sessão encerrada.
- Mas, Senhor Juiz, a ré não está satisfeita.
- Já era de se esperar. Preparem o funeral.


PESADELO

- Você se arrepende de ser de esquerda?
- Sim.
- Você se arrepende de ser de classe média?
- Sim.
- Você se arrepende de ser brasileiro?
- Sim.
- Você se arrepende da cor da sua pele?
- Sim.
- Então eu lhe declaro “culpado”.


CONSPIRAÇÃO

Mágoa lambendo minha boca, Piedade arranhando meu rosto, Insônia puxando meus cabelos. Filhas da puta, acham que eu vou me enterrar nessa cama? Gritei e não foi só Raiva quem segurou minha mão. Agora eu tenho que lutar. Parar de chamá-las. Dessa vez foi no escuro, de noite, sentada na escada, você tinha entrado no ônibus e eu não consegui ir atrás de você ou chorar porque eu estava contente. Uma loira do ponto de ônibus fez cafuné no vira-lata, ele deitou e mostrou a barriga, era uma cadela. Não pude resistir. feliz de novo. "Como uma viciada", diria Piedade.


BRITISH FRIEND

Ele te deixou. Você está viva. Nada disso tem relação. Nada prova nada. Mas é difícil se livrar do que parece ser seu, do que é seu, da nicotina, do diabo a quatro.


PAI E FILHO

O filho chegou em casa e havia dois pais sentados no sofá esperando por ele. O pai chegou em casa e deu boa noite para os gêmeos. Dramas familiares, quanta imaginação.


J. E O SEXO

A maioria das coisas não existe. Coisas da minha cabeça. Meu mundinho prateado. Meu segundo lugar. Perguntei para você se você acreditava em saudade física. As coisas que a gente fez excelentes e todo mundo fica magoado com isso. Eu fico. Você fica. Todo mundo se magoa com a felicidade, alheia ou própria. A felicidade é um gole que deixa mágoa no final. Um gosto azedo, tão azedo que para uma mulher, vale mais a pena ficar triste.


ÓCULOS ESCUROS

Quis acordar antes do sol. Remoer o quanto gostamos um do outro por pura vaidade.


SONHO

Estava andando na rua tomando sorvete de cerveja. Beer Ice cream. Sentei no banco e esperei. Saiu muita gente daquele prédio. Depois veio você. Eu perguntei como você podia não acreditar em Deus. Você disse que acreditava no homem, porque o homem podia ser capaz de inventar uma coisa para acreditar nela depois. Você não sabe tanta coisa assim quanto você pensa. Mas nessa mesma noite disse que estava agradecido. Você não teria coragem de escrever homem com letra maiúscula, teria? Deus sim.


AGONIAS

Tristeza descobre o rosto do capuz, dá uma gargalhada. Está rindo da minha cara e não posso fazer a mesma coisa. Acordo e cubro o espelho.


ETIQUETA

Você já nadou descalço na chuva?
Já sentiu a chuva entrando nos dentes? Na raiz dos cabelos?
Já viu um amigo dar estrela na rua?
Riu até se machucar?
Have you?
Usou aquele vestido para ele?
Usou a mesma roupa dela?
Amou por causa do frio?
Já dançou na faixa de pedestres?
Falou de boca cheia?
Engoliu uma salsicha depois de um picolé?
Você acha que rir é um ato coletivo e social?


QUEM ESTÁ FALANDO A VERDADE?

A alegria vai ser seu pesadelo. Vai puxar seu pé da cama todas as noites.


NOTHIN'S SHOKING

É melhor se impressionar com o que você gosta. É melhor falar mal do que você gosta. Não deixe nada atravessar seu caminho.


OS OUTROS

Vou cuidar bem da velha que eu sou. E da criança. E da mulher e do homem. E do bombeiro e da cientista. E do coelho e do dinossauro.


 
CONVERSA DE MULHER

- eu fiz sem acreditar.
- para colecionar mais uma história em quadrinhos?
- eu fiz para poder me sentir viva.
- você é daquelas que precisa estar dentro de uma história para viver?
- você sabe que eu sou assim.
- e qual foi o problema comigo?
- você não é um bom leitor.

 
ENTRANDO EM CASA

Ela está preparando a caixa de presentes para dar uma volta no quarteirão e sentir o coração cheio. Mundo cinzento de mulheres e sacolas.

A caixa está vazia.

Mundo da lua minguante.

Ela sabe que não pode entrar dentro da caixa.

Hoje ela sabe.

O amor é só dela.

Os pés brincam no jardim. O caracol é uma estrela e as estrelas são buracos de fogo.

A escuridão tem fome.


Saturday, December 20, 2003
 
SAINDO DE CASA


Ela estava com vontade de sair de casa, com vontade de andar na rua, com vontade de se sentir bem perto das pessoas. Vontade de estar feliz sem sentir vergonha. Chega de vergonha, mundo cinzento.

Não adiantava mais andar descalça. Não adiantava mais usar nenhuma droga. Já tinha bebido até o fim todas as bebidas roxas e já tinha assistido as nuvens e cortado um par de asas. Já tinha sido um gato e uma pipa, já tinha dourado sob a luz da cozinha como um cubo de gelo e suas lágrimas eram tão raras e tão delicadas que ela não soluçava de tristeza. Sorria, cheia de lágrimas.

Tudo tinha ficado velho.

Tudo tinha sido experimentado.

Tudo tinha sido nascido e morrido no coração.

Abriu o armário. Segurou a caixa de cartas. Abriu a boca da caixa. Os envelopes voaram pela janela cantando e dançando. As palavras sumiram.

A caixa não era muito grande. Estava vazia. Ela volta encher a caixa.

Sai pela rua paradar um presente para alguém. Sente que é como se carregasse flores, flores muito bonitas. Ela é finalmente uma mulher com um presente nas mãos e seu único destino é presentear.

Um homem está sentado no ponto de ônibus. Ela sabe que aquele é o ônibus.
Ela começa a correr. As pessoas da rua começam a olhar. Ela está sorrindo.
O homem já deu o sinal. Seu coração parece novo. Não tinha experimentado um desespero tão leve... Um desespero cheio de gratidão...Mundo cinzento, você me preenche.

Ei!

O ônibus está saindo. O homem consegue agarrar o cabelo voando, uma boca sorrindo, olhos molhados e uma saia vermelha bem murcha, copo de leite depois da chuva. Ela respirava ofegante, precisando de mais, precisando de muito mais oxigêncio do que poderia conseguir. Desde que nasceu não respira nada bem. E quando respira fundo, deixa todo mundo sem ar.

O homem começa a ficar sozinho e apaixonado.

Passa a catraca, tremendo. Segura a caixa num braço, paga com a outra mão.

Depois de uns minutos, decide que pode continuar vivendo. Decide que precisa se casar e mudar de cidade. Decide levar o instrumento para o conserto. Decide chorar e rir, decide ficar tranqüilo.

Dentro da caixa, um sapato de salto vermelho e um sapato de homem, preto.

Embrulhados com uma fita azul.

O ônibus navegou pela cidade,

Flutuando como se fosse um tobogã.









Sunday, December 14, 2003
 
detalhe


depois de acordar. tive medo.

durou dois segundos, mas eu achei que nós dois não existíamos.

...

tenho comido cada um dos teus gestos.

passo dias inteiros assim.

as minhas mãos passam no seu corpo comedo tudo que beija a palma.

eu alcanço a paz .... quanto toco em você.

...

queria tomar um banho e lavar todos os meus gestos. eu queria lavar a minha boca, lavar as minhas palavras.

que elas fossem sempre frescas.

folhas molhadas saindo da minha boca e refrescando você.

passeio na floresta lilás.

estou em silêncio quando fecho os olhos.

tudo está bonito em mim hoje.

antes de dormir eu faço um gramado chuvoso muito verde, o meu vestido branco e você, sem camisa, correndo, ou jogado no chão com a mão em mim.

não há nenhuma palavra entre nós.

e não existe nada tão real quanto o que esta acontecendo nas duas cenas.

te ver dormindo e correr no gramado.

é a mesma coisa.

a menina mimada que chorava com seus doze ursos de pelúcia e a que toma banho de sol e beija o dia. eu gosto das duas.

você não está dormindo e eu não estou dormindo e nenhum dos dois abre os olhos.

nós estamos dentro da água doce e de dentro do beijo você cospe uma pérola.

ela podia ter veneno dentro, ela podia conter a eternidade.

você me dá um sorriso.

um sorriso que parece veneno e que parece a enternidade.

tudo isso acontece e vai continuar acontecendo porque está escrito em mim.

eu sou uma folha.

você escreve todos os seus gestos em mim.

a humanidade inteira é uma folha.

deus escreve sobre seus filhos.

escreve em mim, escreve em você.






Wednesday, December 10, 2003
 
férias

estamos andando pela estrada de terra. está sol. temos muita água no cantil. as calças estão molhadas, o tênis faz choc-choc. você está usando um boné verde exército. camiseta branca com as mangas curtas arregaçadas até o ombro. botas caras para gringo fazer caminhada. cômico e sexy.

eu estou com uma regata cor de sorvete de creme. o sutiã é verde escuro. minha boca está muito vermelha. uso rabo de cavalo. a mochila é leve. a sua também. chegamos no meio do mato alto. dá pra ver a praia lá de cima. começa a terminar o dia. matamos a sede. eu fumo um marlboro. você não me enche o saco. achamos uma pedra. não falamos muito.

você está pensando em como eu estou parecida com o que você conheceu. eu estou pensando que nós vamos tomar um banho gelado no hotel e eu não vou continuar a parar de beber. nem de fumar. até ficar completamente cansada.

tem um vestido branco e curto me esperando depois de tudo isso. você vai ter coragem de usar um short ou uma bermuda. com sorte você não tira o pé do hotel com calça jeans e chinelo havaianas. não, é a minha fantasia agora. e nela você está gostando muito de si mesmo, sem se preocupar com nada, e alguma coisa lhe diz que você está muito bonito. entao você respira fundo antes de por o pé na rua. e sai gingando.

comemos peixe e a noite cai.

tem um boteco tocando música do rádio. uma rádio que só toca led. depois eles tocam surf music. vamos ficando melancólicos mas a surf music dá um tom de ironia perfeito para tudo o que está parado em volta.

no buteco tem um piano e quem está tocando é um garoto de quinze anos que substitui o pai, uma pessoa muito ocupada com mulheres.

estamos contentes demais para sentir tédio. mesmo que alguns digam que o tédio é uma coisa muito bonita.

você comenta que há muitos cachorros na região. milhões de cachorros e nenhum gato. nenhum filhote e nenhum gato gordo que espreita do canto. só cachorros. e não são muito magros. vira-lata que passa bem, você diz, indicam o pib da região.

eu não respondo.


dormi no seu colo há quinze minutos.


Sunday, December 07, 2003
 
1.

- Como é que você fica acordado?
- Eu penso em tudo o que eu não quero pensar.
- E você pode se transformar no que está pensando?
- Sua alma não vale muita coisa, se é isso o que você está tentando saber.
- O que tem de errado com ela?
- Nada. Não tem nada de mais.
- Como assim, nada de mais? Não é boa o suficiente?
- É uma alminha boa.
- Não é estrume suficiente para você?
- Não começa.
- Vamos, diz aí.
- Você não vai querer saber.
- Eu já quero saber e você sabe. Vai esperar até que eu caia de joelhos?
- Escuta aqui, você sabe muito bem que não pode saber.
- Não, não sei. Quer fazer o favor de me explicar?
- Você sabe.
- Acha que eu ficaria atormentado pela idéia? É isso?
- É.
- Acha que eu perderia horas de sono se soubesse o que há de errado comigo?
- Não. Quer dizer, sim. Há muitas coisas erradas com você.
- E?
- E isso é divertido. Háháháháhá. Ops, desculpe.
- Ok, isso é demais. Qual é a novidade? Eu não tenho caráter? Eu sou mais um dos muitos egoístas que você conhece? Qual é a grande mensagem que o inferno tem para me dar? A solidão eu já experimentei, não é tão ruim assim.
- Você não é capaz de amar.
- Do que você está falando? É claro que eu sou capaz de amar, já amei muito na vida. E afinal de contas, você é um demônio ou não?
- Sou.
- Mas que espécie de demônio é você? Um puto desgarrado do clã de cornos ou é tão bonzinho que ninguém lá no céu agüentou a sua ladainha auto-ajuda?
- Me diga você.
- Eu acho que você é dos piores.
- Obrigada.
- Não, você deve ser tão bom que só falta entrar para o céu. E a sua última tarefa é ensinar um escritor...
- Na verdade sim, eu sou muito bom.
- Não disse?
- Eu sou o melhor demônio.
- Você é o meu melhor pesadelo também.
- Vou contar então.
- ...
- Quando você nasce aparece um gosto na boca...o nascimento de cada criança provoca um gosto na boca de qualquer um que esteja por perto.
- Você estava perto de mim quando eu nasci?
- Não, eu não gosto muito de crianças. Isso é coisa de anjo. Mas me contaram.
- Qual era o meu gosto? Era ruim?
- Não. Era fraco, doce, fresco. Gosto de flor molhada com açúcar. Era muito bom.
- E aí?
- Esse gosto que fica na boca, ele é uma espécie de carta. Quando um demônio sente esse gosto de novo, está na hora de...
- De aparecer e mandar a mensagem dos infernos?
- Para os mais espertos, nem sempre é fácil.
- Isso é um elogio?
- Ah, céus! A sua ansiedade é a coisa mais medonha e fedorenta que eu já senti na vida. Nem entre todos os moribundos de todas as masmorras existe algo parecido.
- Já notei que sou especial.
- E como. Adeus.
- Não, você não pode...
- Escuta irmão, eu não prometi nada.
- Mas o que você quer que eu faça?
- Acorde.
- Como assim?
- Quando acordar, você vai saber.

2.
Abri os olhos. Estranhamente, não parecia tão real quanto antes. Não era nem colorido nem quente. Acordei. O quarto escurecia. O céu nublava. Não parecia possível conseguir ar ou espaço suficiente para considerar a possibilidade de fazer algum movimento. Quase duvidei, quase duvidei de estar respirando.
Sentada no sofá, uma mulher me machucou. Era uma espécie violenta de olhar, e me machucou. Ela abriu os lábios que pareciam origami de papel crepon e disse "bem vindo". Onde estou? Onde sempre esteve. No mundo dos que amam de verdade. Soltei a respiração e fingi que estava sorrindo. Quando abri os olhos, as paredes do apartamento me olhavam com desdém.



3.
A cabeça doía. Ao levantar, balancei garrafas de cerveja que tilintaram como sinos e jorraram espuma quente no chão, como no final de uma festa. Foi assim que tudo começou. Eu estava no meio da sujeira e o sol não parava de brilhar.

4.
Sabia que algumas pessoas iam querer saber se eu tinha um bom terno no armário, um aparelho de som, uma t.v., e se o meu apartamento estava situado num bairro decente de um país glorioso. O sonho mais alto de um drogado é um lençol limpo ou constituir família? Isso é culpa da espécie? Só ficaria acordado se pensasse nesse tipo de coisa, mas por isso mesmo eu ia me encolhendo aos poucos. E procurando bebida e calmantes.

5.
Aquela mulher voltou, ela era como uma estrela. Você não sabe se ela morreu há muito tempo ou acabou de nascer, e aquele brilho é um veneno cheio de açúcar e chocolate.


Wednesday, December 03, 2003
 
deserto das lágrimas




ela queria ter coragem de fazer de frente para o espelho.

não.

ela queria fazer de frente para uma pessoa.

não.

ela queria aprender a fazer compulsivamente. da maneira mais bonita.

enxugaria o rosto e diria ao anjo:

- consegui. você sabia que eu ia conseguir? eu acho que senti a sua mão.
 
ela prometeu que sempre choraria dentro do seu abraço. que babaria na sua camiseta sem nenhum receio.



só precisa aprender a chorar.



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